"Penso onde não sou, logo sou onde não penso."

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Clarissa.

"Amaro fica olhando para fora, através das janelas por onde a luz do meio-dia escorre. O seu corpo está aqui na sala de refeições da pensão de D. Eufrasina Couto. Mas o pensamento voou para longe. Uma vez há muitos, muitos anos, um menino olhou a vida com olhos interrogadores. Tudo era mistério em torno dele. Era numa casa grande. O arvoredo que a cercava amanhecia sempre cheio de cantos de pássaros. O mundo não terminava ali no fim daquela rua quieta, que tinha um cego que tocava concertina, um cachorro sem dono que se refestelava ao sol, um português que pelas tardinhas se sentava à frente de sua casa e desejava boa tarde a toda a gente. Não. O mundo ia além. Além do horizonte havia mais terras, e campos, e montanhas, e cidades, e rios e mares sem fim. Dava na gente vontade de correr mundo, andar nos trens que atravessavam as terras, nos vapores que cortam os mares. Andar... Nos olhos do menino havia uma saudade impossível, a saudade de uma terra nunca vista. Um dia- quem sabe?- um dia um vento bom ou mau passa e leva a gente. Um dia... 
-Amaro, meu filho, que é que você quer ser? 
-Marinheiro. Pra viajar. Ou maquinista pra viajar também. 
Mamãe sorria e continuava a bordar. Tinha uns olhos bons e um jeito todo especial de olhar para os outros. Papai falava grosso. Tinha bigodões retorcidos e uma enorme medalha de ouro presa à corrente do relógio. -Meu filho, um homem precisa fazer força para triunfar. Só os fracos é que se abatem diante da vida. 
Papai dizia isto sempre, com a testa franzida, sacudindo a mão fechada no ar; e a medalha grande dançava contra o colete escuro. 
Lutar... Amaro sentia arrepios. Lutar. Luta era sangue. Lutar era ferir e ser ferido. Homens que vencem e são vencidos. Mas que é o triunfo, que significa vencer? Não seria melhor ficar sempre e sempre ali, junto da mãe, na cidade natal, na rua humilde onde havia um cego que tocava concertina, um cachorro sem dono que se refestelava ao sol e um vendeiro português que pelas tardinhas... 
-Posso trazer o almoço, seu Amaro? 
Na sua frente, Belmira sorri com dentes alvíssimos. Amaro sacode a cabeça afirmativamente. 
-Pode. 
Enfim... Eram recordações boas. Tudo aquilo tinha ficado muito longe no passado. Verdade é que a gente nunca esquece a infância. Pieguices? Mas, que é que a vida pode nos oferecer de melhor, de mais puro?..."

   

4 comentários:

Alice Bovy disse...

Um sopro de poesia no meu dia... Muito lindo o texto, cheiro de infância, de café com leite e bolacha maria, chão molhado e risos.

:-)

Makeli disse...

Alice, livro recomendadíssimo! O livro traz como cenário uma pensão com indivíduos de culturas diferentes tomando café da manhã, almoçando... convivendo! concomitante ao cotidiano dos moradores, Clarissa está despertando para adolescência. Magnífico! ;

Anônimo disse...

"Não. O mundo ia além."
O desejo incontrolável de conhecer o mundo. De ir mais além, mais adiante...correr o mundo. Quem nunca teve?! Com certeza o livro já esta na minha lista de livros a serem lidos. Bjs!

Makeli disse...

Ruri, você vai adorar! Érico Veríssimo não te decepcionará. Beijão